RETRATOS DE JANE
Desvirtuando a luz do sol no solitário despertar, sentia a brisa no meu rosto enquanto limpava meu corpo da areia molhada. Sem forças, ali sentado, imaginava como os povos nômades do deserto caminhavam dias para encontrar água que lhes dava a vida... meu pensamento foi interrompido por um vulto ao longe que se aproximava; ao chegar mais perto vi que era uma linda mulher, parecia um anjo em seu vestido transparente que deixava aparente sua silhueta. Sua estatura era alta e seu corpo, esbelto. A pele morena refletia o sol dos trópicos. Seus olhos azuis da cor do mar espalhavam a luz interior de sua alegria e jovialidade. Os traços bem desenhados compunham uma fisionomia calma, que mais parecia uma pintura.
Eu havia passado a noite inteira à procura de alguém para conversar. Estava de mal com o mundo, com a vida, não encontrava mais forças para continuar, havia desistido de tudo.
Ela veio em minha direção e sentou-se ao meu lado, não sabia o que dizer; estava atônito com tanta beleza ao meu redor. Perguntou meu nome e falou da sua vida, da alegria que sentia pela vida. Durante horas, não sei precisar, conversamos sobre muitas coisas. Eu estava encantado, meus olhos penetravam através de seus lindos olhos azuis, meu coração palpitava, todos os meus sentimentos desanimadores haviam desaparecido. Era algo maravilhoso o que sentia ao ouvir sua voz mansa e delicada, como o murmúrio de ondas tranquilas que quebram na areia deixando uma seiva brilhante se dissipando com os raios de sol... não havia me dado conta das horas, o dia havia passado e ali estávamos nós, o universo se compadecendo, a natureza à nossa volta exalando seu perfume... De repente, ela levantando-se com singeleza correu na direção do mar, sem que eu conseguisse evitar, desapareceu em meio as ondas do mar. Fiquei perplexo!!! Tudo parecia mover-se lentamente à minha volta, não queria acreditar que a perdera. A escuridão da noite me envolveu como um rolo de fumaça, meu mundo havia desabado, meu coração estava sangrando... As ondas agora voltavam ao seu ritmo compassado, quebrado apenas pelo leve toque na areia que murmuravam seu nome: “Jane”.
A luz do farol acendeu, a escuridão fora quebrada por um reflexo; não havia percebido, mas ela deixara cair algo, um cordão com uma medalha onde se lia uma data “21 de abril de 1945”.
- O que seria isto? Que significava esta data? – Indaguei a mim mesmo.
Quanto mais eu pensava, mais alucinado ficava; não conseguia esquecer aquele rosto, aquela voz...era bom demais para ser verdade...
- Espere!!! Foi então que percebi que havia uma figura na outra face da medalha, um escudo com o nome de um clube de natação, eu não conhecia, mas ficara excitado só de pensar que poderia encontrá-la novamente. Entendia agora porque ela nadava tão bem; eu não me atreveria a encarar o mar naquela noite, as ondas estavam encapeladas.
Deixei aquele lugar com esperanças renovadas, jamais encontrara alguém tão encantador. Conversara comigo sem me recriminar pelo meu modo de ver as coisas. Havia sim, mudado minha vida para melhor, acendido uma chama dentro de mim.
Na manhã seguinte, voltei para casa, peguei o telefone e liguei para alguns amigos. O tempo eterno enfim trouxe boas notícias, havia encontrado a informação que tanto procurava. Para minha surpresa, o clube ficava numa cidade distante de onde morava, mas, eu estava entusiasmado, meu desejo de vê-la novamente superaria qualquer obstáculo. Coloquei algumas roupas na mala e parti para a estrada. Não conseguia esconder a ansiedade, ao mesmo tempo, pensava que era apenas uma pista, poderia não conseguir encontrá-la. Eu não queria pensar nesta hipótese, de qualquer forma era tudo que tinha.
Aqueles momentos que passamos juntos foram os mais incríveis de toda a minha vida.
Depois de horas na estrada, cheguei a uma cidade no interior de Minas Gerais. Achar o clube foi tarefa fácil. Era uma medalha de competição, louvor ou qualquer coisa semelhante e estava um pouco embaçada e oxidada pelo tempo.
Um pouco ofegante, cheguei ao clube, dirigi-me à secretaria onde imaginava ser o melhor local para começar minha investigação, sentia-me como Sherlock Holmes, tentando desvendar um grande mistério. Mostrei a medalha a mocinha do balcão que tão gentilmente me atendera, perguntei se ela já tinha visto e se realmente pertencia, ou melhor, fora feita por eles. Ela exitou um pouco, disse que era uma medalha muito bonita e parecia ser de ouro, mas nunca vira nada igual. Uma senhora idosa que aparentava cerca de 80 anos e estava ouvindo nossa conversa, aproximou-se e pediu para olhá-la. Ela abriu um sorriso e eu também; não sabia por que, mas algo me dizia que ela a reconhecera.
Um pouco ofegante, cheguei ao clube, dirigi-me à secretaria onde imaginava ser o melhor local para começar minha investigação, sentia-me como Sherlock Holmes, tentando desvendar um grande mistério. Mostrei a medalha a mocinha do balcão que tão gentilmente me atendera, perguntei se ela já tinha visto e se realmente pertencia, ou melhor, fora feita por eles. Ela exitou um pouco, disse que era uma medalha muito bonita e parecia ser de ouro, mas nunca vira nada igual. Uma senhora idosa que aparentava cerca de 80 anos e estava ouvindo nossa conversa, aproximou-se e pediu para olhá-la. Ela abriu um sorriso e eu também; não sabia por que, mas algo me dizia que ela a reconhecera.
- A senhora já viu uma igual? – perguntei;
- Há muito tempo não vejo essa medalha – disse ela.
- Esta medalha foi feita para a comemoração do centenário do clube e dada numa competição interna neste dia aos vencedores.
Eu estava encantado com a história, mas, desejava saber se ela realmente poderia me dar à informação sobre quem pertenceria. De repente ela tirou do peito um cordão com uma medalha igual, só que num tom prateado e disse:
- Veja, esta medalha eu ganhei quando tinha 17 anos numa competição de natação em 1945. Cheguei em segundo lugar; até hoje sinto saudades e por pouco não a venci. Na época era tudo para mim; meu pai era o presidente do clube e ele fez estas medalhas especialmente para o evento, eu era a melhor nadadora da cidade, mas naquele dia surgiu uma jovem muito linda e...
Antes que ela terminasse a história, eu a interrompi. Não era isso que eu queria saber. Mais uma vez eu perguntei sobre quem pertencia a medalha; na melhor das hipóteses, seria ela avó da pessoa que eu procurava, isso me deixava ainda mais ansioso.
-Meu filho, como eu ia dizendo, naquele dia uma jovem muito linda apareceu para competir, seus olhos eram como o azul do mar – e que mais tarde viria a ser minha melhor amiga – acabou conquistando o primeiro lugar, e ganhou esta medalha...
Interrompi novamente e indaguei: - por que seria aquela medalha e não outra?
- Estas medalhas são únicas, não existem outras, foram feitas apenas três: de ouro, prata e bronze, para as ganhadoras da celebração do centenário. Foi uma competição que envolveu várias etapas e muitas nadadoras durante uma semana.
Não pude deixar de exibir um sorriso de contentamento, minha primeira investigação e já estava na pista certa. A velha senhora com seus cabelos na cor púrpura, com sua voz cansada, mas suave, parecendo o murmúrio de um riacho de águas tranquilas correndo sobre uma ponte, me deixava cada vez mais assoberbado, mal podia esperar para revê-la e falar com ela novamente.
- Seu nome era ”Jane” – completou a velha senhora.
- “Jane” putz!!! – exclamei em alta voz, surpreso com o nome que ela acabara de falar, sem compreender sua entonação e o tempo do verbo que usara.
- Diga-me onde posso encontrá-la? Gostaria de falar com ela. Conheci uma garota em Cabo Frio e ela deixou cair essa medalha quando foi embora. Eu só sei seu primeiro nome, Jane, e como a senhora disse, também tem os olhos azuis da cor do mar, acredito que deva ser uma neta ou parente dessa pessoa.
Quando fiz este relato, a velha senhora foi tomada de grande espanto, suas pernas vacilaram naquele momento, amparando-a, pedi à mocinha que estava no balcão que buscasse uma cadeira e um copo d’água com açúcar para ela. Trêmula, sob o efeito ainda do susto, ela me olhou com olhos de ternura, pediu que a descrevesse e relatasse tudo que sabia sobre a tal moça. Sem compreender nada, pois a velha senhora me deixara a sensação de que algo estava errado; a pressa e a ansiedade já não importavam mais, o suspense e o drama tomavam conta do meu coração como nos filmes de Hitcock. Descrevi tudo que lembrava sobre nosso encontro, cada palavra, cada gesto, cada olhar... de repente lembrei de uma palavra à qual não dera muita importância, mas que agora diante do panorama que estava a se desenrolar, fazia algum sentido. Ela havia mencionado algo sobre um farol.
- O que foi que você disse? - interrompeu-me a velha senhora que a cada momento me deixava mais atemorizado.
- Que ela havia mencionado sobre nadar sob a luz de um farol.
Foi então que me dei conta de que o farol da praia do foguete em Cabo Frio estava desativado há anos. Naquele momento, eu só tinha olhos para ela e nem havia reparado neste fato. Como pude ver então o reflexo da medalha na areia quando a luz incidiu sobre ela? Como havia visto seu último aceno do mar pela luz do farol? Não deveria haver qualquer iluminação não natural naquela praia, eu conhecia aquela praia, era meu refúgio em dias de solidão. Muitas noites dormi sob a luz das estrelas, e essa era a única luz que havia. Mas eu tinha visto, sim, tinha visto o farol em funcionamento, como numa noite de tempestades, quando as embarcações buscam sua luz para se guiar e seguir em porto seguro.
Agora tomado de pavor, temia pelo que viria a seguir. A Velha senhora colocou sua mão sobre a minha e com gesto de ternura como há muitos anos não sentira, disse-me:
-Nós éramos muito amigas, eu e Jane. Ela desapareceu ainda muito jovem, quando tentava nadar numa noite em que o mar estava revolto. O corpo dela nunca foi encontrado, ela era muito corajosa, seu maior sonho era ver o oceano e nadar em mar aberto sob a luz de um farol, imaginava a beleza da luz incidindo sobre as águas e deixando a sensação de crepúsculo logo a seguir, era uma experiência que ela queria sentir, o doce e o amargo, a vida e a morte. Era apaixonada pelo mar, apesar da nossa cidade natal estar muito distante dele. Isto aconteceu logo após as competições, o sonho dela se realizaria. Viajamos sozinhas. Pela primeira vez havíamos saído de nossa cidade, fomos a Salvador e ficamos na casa de uns amigos de meu pai durante o verão de 1948. Ela nunca se casou, portanto a descrição que você fez é muito parecida com a dela. Eu nunca me conformei e nestes últimos momentos de minha longa vida tenho pensado muito nela e de como poderia ter evitado sua morte se ao menos tivesse a coragem de ter entrado no mar naquela noite...
Neste momento eu apertava a mão da velha senhora que espantada e assustada, ficava cada vez mais pálida por tudo que estávamos conversando. O que eu realmente havia visto? Jane era real? Mas como poderia ser ela? Estava morta há mais de 50 anos; estivera ali comigo, havia me consolado, num momento de profunda depressão e sofrimento. Anda sinto seu perfume.
Agora, havia caído em mim, me dera conta de que a única pessoa que me compreendera, não existia; mas, não poderia ser só a minha imaginação, a medalha estava lá para testificar esse momento. Juntei minhas lágrimas às da velha senhora e houve um silêncio profundo em nossos corações. Após alguns minutos ela levantou-se abruptamente como se tivesse lembrado de algo e levou-me a uma sala onde ficavam guardados, os troféus, as medalhas, as fotografias e recordações da história do clube. Revirou algumas gavetas e com um olhar de satisfação e amor fraternal levou a mão ao peito trazendo bem apertado uma fotografia. Lá estava ela, Jane, junto da velha senhora em fotos muito antigas, algumas em preto e branco. Era possível ver a beleza de seu olhar, eram realmente lindas, agora me referindo a velha senhora. Chorei ao ver as centenas de fotos que ela guardava naquela sala, desejei ter nascido em outra época. Daria tudo por uma máquina do tempo que me levasse ao encontro dela.
Havia passado por uma grande experiência e uma grande lição de alguém que amava a vida e o mar.
Depois de horas de conversa, emoções fortes, pavor, suspense e temor, tinha compreendido em parte a razão de tudo isso. Despedi-me da velha senhora, e sabia naquele momento que nos tornaríamos grandes amigos.
- Ah! Mais uma coisa! – exclamei eu, num último esforço da memória.
- Ela mencionou mais alguma coisa, que agora me vem a lembrança; que eu deveria devolver a Susan...
quando olhei para a velha senhora, lágrimas escorriam pelo seu rosto cansado e sofrido; já sabendo a resposta, perguntei espantado:
- Qual o seu nome?...........
Por Paulo Figueiredo
Por Paulo Figueiredo
No Borbulhar da bruma
Ondas seguem calmamente
como sombras na noite;
mal conseguem perceber seu destino
repetidamente se contentam
em acariciar a areia da praia.
A saudade aperta meu peito,
deitado na areia
no borbulhar da espuma
na bruma do mar.
sopra o vento,
a brisa forte
já cansada de chorar, me consola.
na caída da noite,
na contra mão
do vai e vem das marés,
já não sonho,
hoje faço
da solidão meu viver.
Por Paulo Figueiredo
Por Paulo Figueiredo